chuva

quando eu era criança, tinha o costume de ficar com a minha vó vendo a chuva em frente de casa.

eu amava assistir aquele espetáculo do céu com ventos, trovões, raios e às vezes até uns pedacinhos de gelo.

em certo momento passei a temer a chuva com a mesma intensidade do amor que um dia tive. significava ter que tirar coisas do lugar, ver a tristeza da minha mãe, significava dor.

muitas noites passei em claro ouvindo aquele barulho incessante com medo de que algo pior acontecesse.

novamente a vida mudou e hoje estou aqui quase três da manhã de uma segunda-feira de outubro vendo a chuva cair. sem medo, só sobrou o antigo amor.

valorizar os presentes que a gente ganha da vida. saber que tudo passa, uma hora ou outra.

dançar na chuva quando a chuva vem.

crônica da mostra

sábado, duas da tarde. Fila para a compra de ingressos da Mostra Internacional de Cinema no CCSP.
duas mulheres em seus trinta e poucos anos, talvez um pouco mais, aguardam sua vez.
— quero dois ingressos pro filme das três, diz a primeira sacando o cartão.
— é só dinheiro, moça. diz o caixa.
— nossa, jura? Que sorte que eu tenho esse dinheiro aqui na carteira, diz a segunda mulher um pouco irritada com a situação, tirando duas notas de vinte e entregando para o rapaz.
— fica quatro reais, diz ele, um pouco intrigado com a quantidade de dinheiro que a mulher balança na frente dele.
— só? Mas no site dizia que o ingresso custava vinte.
— sim, mas aqui é spcine, diz um outro funcionário, que pacientemente explica o que é spcine, pois obviamente as mulheres nunca tinham ouvido falar disso.
— é um programa da prefeitura da cidade que disponibiliza filmes a preços populares, e que faz parceria com festivais de cinema como a Mostra, e assim a cobrança segue outro padrão.
— nossa, que maravilha, concordaram as duas entre si.
chega minha vez, entrego quatro reais, troco um olhar de cumplicidade com o caixa, e sigo para a sessão.

sigo inspirada pelos textos que não meus falam também de mim.

releio histórias que de alguma forma são um pouco minhas e tento entender aonde me encaixo nesse carrossel que nunca para de girar.

o fato é que já são duas da manhã de novo e a promessa de dormir mais cedo mais uma vez não foi cumprida. não que ela tenha sido feita com essa intenção.

uma semana que puxou, que bateu, que pareceu infinita, que só exigiu e deu muito pouco.

preguiça de dormir. medo de não conseguir. medo do que vem, medo do resultado do exame que tem data pra ser aberto e que vai ser semana que vem. medo da falta de dinheiro, medo do fantasma do endividamento, medo de não dar conta de ser o necessário.

medo.

sei lá, era pra ter sido diferente.

pergunte-me onde moro

mal sabia eu que aquele bairro periférico da zona sul ia ter tantos filhos ilustres. além de mim, claro.

quando eu era criança imaginava que ninguém conhecia a vila joaniza, além, obviamente de quem morava lá. por isso, foi com grande satisfação que em algum momento da adolescência descobri que a cris vianna era cria da região, inclusive talvez minha tia conhecia algum parente dela, porque tem isso né. depois de trinta anos no lugar, você conhece as pessoas.

ou você acha que conhece.

tipo o vizinho da frente, que tinha um fusca e a gente achava meio bobão. e que era muito popular, porque as pessoas viviam gritando o nome dele no portão. depois de um tempo descobrimos que ele era traficante e inclusive deu uma sumida.

risos

um dia, lendo um livro do bortolotto descobri que ele passou por lá na infância. meu tio pode até ter conhecido ele, quem sabe?

a mais recente descoberta foi a deputábata que eu nunca tinha ouvido falar. descobri que ela tinha não só harvard, encontro com obama, num sei que lá no currículo, também tem em sua biografia a vila missionária (que é do lado da vila joaniza mas minha mãe não queria morar lá não deos o livre).

outro dia a vila joaniza até despontou no twitter quando alguém disse que a casa da mãe amanheceu sem energia porque tinham roubado os cabos. um clássico. cobre, galera.

compartilhamos, enfim, esse passado. eu, cris vianna, bortolotto e deputábata. se alguém contasse isso pra menininha da casa mais feia da rua, ela ia ficar cho-ca-da.

acho chique. e agora finalmente tenho as referências pra responder a pergunta “onde você mora?”

variações sobre amor num domingo qualquer

eu parei no meio do carnaval pra escrever sobre idealizações de amor. o que não é nenhuma novidade, já que já discutimos racismo estrutural no meio do bloco.

quando eu era criança aprendi que mulher acima dos 30 que ainda não tinha casado era olhada com pena por nós, por todos. ela era a solteirona. a que todo mundo olhava e pensava “qual será o problema dela? ela é bonita, bem-sucedida, porque será?” sim, nós pequenas crianças ouvíamos isso dos adultos e repetíamos, porque é isso que se faz.

daí que uma das metas da minha vida era não ser essa pessoa no futuro. ser julgada e apontada a vida inteira já me era o suficiente exaustivo e dolorido pra que se incluíssem mais motivos. daí que daqui a 17 dias eu faço 30. spoiler alert: não casei.

e aí que nos últimos anos eu tenho tentando entender o porquê de se gastar tanto tempo e energia em busca de “amor”. por que alimentamos essa ideia de que só é possível a satisfação completa por meio de um relacionamento romântico. e aí chega aquele momento que você encontra “o amor da sua vida” e tudo se encaixa e faz sentido e são milhares de fotos e stories e declarações porque você precisa mostrar pros outros que você conseguiu atingir o alvo. você faz parte de um casal.

nem eu que sou pisciana consigo entender. porque como dizia drummond “hoje beija, amanhã não beija”. o amor romântico é uma falácia. porque a sua alma gêmea foi os cinco primeiros namorados e agora é esse e amanhã o que será?

amor é dia a dia, é andar junto. desejo eu entendo, desejo eu tenho você tem nós temos. e beijar, pegar, querer, transar, também é parte da nossa vida e tá tudo bem querer, tá mesmo. mas o amor é mais que isso. e meu apelo é não fica guardando seu amor pra o dia em que você estiver numa relação romântica. não ache que afeto, companheirismo, intimidade ou qualquer coisa seja algo que só pode existir nesse molde de relação. não dá pra transformar em prioridade algo tão passageiro na vida.

não desprezem os pra sempres que são de verdade.

30 é complicado. mas é bom.

chego à idade das tia solteirona com a certeza de que tem amor disponível pra mim, de que sou amada, de que tá tudo bem e de que tem muita coisa que eu preciso, mas estar num relacionamento romântico não é uma delas.

se desse pra dizer tudo o que quero dizer com certeza não seria eu dizendo

29 dias que faltam.

29 também é o número de voltas dadas pelo planeta ao redor do sol desde que estou viva nele.

e estamos na lua cheia.

que desperta desejos, emoções, que muda a maré, que traz à tona algo adormecido, que faz rir, faz chorar, faz porque é dela, porque é assim.

o sol entrou em peixes.

hoje eu chorei com uma música, com outra música, com um texto bonito, com meus pensamentos, falando sozinha no meio da rua, tentando dormir, tentando acordar, tentando.

“nós pode?”

porque eu queria ser menos esse tudo que é tanto e que me sufoca e que te sufoca às vezes. porque eu demorei uma vida de pessoas cruéis que feriram lugares que eu nem ao menos consegui encontrar ainda. e fui surpreendida pela vida com algo tão incrível, tão bonito, tão real. e que se eu tivesse um desenho, uma música, um algo concreto e prático pra mostrar eu mostraria, mas a verdade é que eu só tenho essas palavras desencontradas num texto que não faz nenhum sentido, mas eu preciso continuar a colocá-las pra fora pra saber se no fim pode ser não sei que faça algum.

e toda vez que eu penso no passado me dá medo também do futuro. mas o presente está tão bom será que não é o caso de aproveitá-lo já que é tudo o que temos? hoje a gente aproveita hoje. e a gente se cura, se encontra e se entende e continua. nada, nada, nada nessa vida é igual a qualquer outra coisa. momentos se perdem, dias se perdem, coisas se perdem.

eu não tenho certezas e garantias. eu tenho um coração, uma disposição, dois ombros e abraços de todo dia, de vez em quando, de toda hora. eu tenho o que eu sou. eu tenho a mim. que muitas vezes falho em entender, aceitar e até mesmo amar. mas tem luta, tem coragem e disposição. e amor, porque amor sempre tem.

29 é harmônico até mas falta pouco até acabar. daí vem outros números, outras contas, outros.

e o que fica? pelo que vale a pena?

das baratas. ou das dores.

faltam 30 dias pro dia mais importante do seu ano. uma das únicas coisas que não conseguiram tirar de você.

daí não é como se fosse esperado que uma coisa muito incrível acontecesse, mas também não é como se fosse das melhores coisas que uma barata caia em cima de você.

mas, óbvio, em se tratando da sua vida isso acontece. uma barata, morta ou viva, isso tanto faz, cai em você. no seu pijama mais confortável.

o coração acelera e falta o ar. tem que lembrar que é preciso respirar. tem que lembrar que é preciso respirar. respirar.

se todos os momentos da sua vida significam algo, o que será que esse em específico diz? bem queria saber pra decifrar logo todos os sentidos e não ter que ficar sofrendo cutucando descascando.

as cicatrizes que eu tenho me dizem quem eu sou por onde passei, o que enfrentei; me chamam de errada, me dizem que não é assim, e aí eu olho no espelho e só o que consigo ver são elas. elas tem um poder de atração incrível e quando menos espero estou lá de novo repetindo o mesmo gesto.

será que vai existir um dia nos poucos anos em que dura uma existência em que não vai ser mais tão dolorido? será que é justo que o medo de futuros desdobramentos de uma ferida me impeça de agradecer por ela ter se curado? até quando dura esse processo?

quando você faz uma cirurgia, mesmo depois de tirar os pontos é preciso ter cuidado. porque “internamente demora mais pra sarar”, é o que todos dizem. e aí você tem que fazer tudo com mais cuidado, dormir só de um lado, tentar não fazer movimentos bruscos. só o que você tem é imaginar em quanto tempo aquele tecido agredido por um bisturi ou uma tesoura ou agulha irá se regenerar; vasos, veias, pele, sangue, carne.

que doi, que incomoda, que está lá pra te lembrar de uma decisão, de uma escolha. e mesmo que você queira revertê-la já não é mais possível. em quantos dias será que uma dor passa? de quantas dores será possível lembrar daqui um tempo?

de quanto tempo é uma dor?

30 dias. uma barata.

30.

um feliz

eu amo natal.

mas tudo bem se você não gosta. tudo bem se as suas crenças não passam pelo caminho da manjedoura em belém. tudo bem.

afinal de contas, o significado do nascimento de jesus é libertação. um ser que escolheu vir pra essa terra, ser pobre, não ter uma casa, pregar o amor, andar com os marginalizados, ser torturado e morrer.

libertação das correntes religiosas que impõe um modo de ser, de agir, de falar, de vestir, de comer, de existir. é liberdade pra olhar pra quem se acha muito bonzinho e certinho e “cidadão de bem” e chamá-lo de hipócrita, de raça de víboras, sepulcro caiado. liberdade de rejeitar como liderança aquele que se considera melhor que alguém ou digno de algo melhor.

natal pra mim significa que o menino que nasceu num estábulo ao lado dos animais entende as minhas dores, se compadece de mim e me ama desse jeitinho mesmo, sem tirar nem por.

natal é amor. é amar. é acreditar. é querer fazer uma comida gostosa, pra compartilhar com aqueles que te acompanham diariamente, o ano todo, a vida inteira. no dia do ovo frito e no dia que tem lasanha. é ficar perto, é cuidar. cada um do seu jeito.

natal não tem fórmula, não tem certo e errado.

natal pra mim significa de dentro pra fora, não depende das circunstâncias, não depende de lugares, não precisa de presentes caros.

um bom natal.

dói.

quando você acha que finalmente está livre, mas na verdade só mudaram as correntes que te prendiam.

quando você olha onde machucou e aparentemente está cicatrizado, mas por dentro ainda não.

quando você ganha uma batalha e acha que finalmente vai ter paz, mas a guerra se intensifica.

quando você esgota todas as possibilidades de consertar algo quebrado com suas próprias mãos.

quando dentro de você tudo parece uma ferida que sangra ao menor movimento.

quando você está tão cansada que não acha que consegue dar mais um passo. e também já não faz diferença, porque você ao menos sabe que rumo tomar.

quando a sua esperança de algo mudar simplesmente se esgota e todas as portas parecem fechadas.

quando o passado volta, invade sua vida e se acomoda como alguém que não está disposto a ir embora tão cedo.

quando a única coisa que você deseja é que essa dor pare. mas você acorda, toma café, almoça, vive e vai dormir com um nó na boca do estômago e ele simplesmente não passa.

não importa o que você faça, fale, tente, dói. e suas palavras perdem o sentido.

quando já não faz mais diferença. quando você se sente um lixo. quando você faz merda.

quando.

7

aquela semana.

em que a máquina de lavar quebra.

aí você pensa “bom, é só um contratempo”, chama o conserto e acha que em dois dias já vai estar tudo resolvido.

mas tem greve, que você nem tá entendendo direito o que acontece, e nem dá pra tentar porque são muitas threads e muitas infos e sua mãe já quer estocar feijão.

enquanto isso tem outras greves e outras assembleias que você precisa ficar atenta porque tá todo mundo preocupado com os professores se aposentando e com o teto que pode cair na sua cabeça, com a comida que pode faltar, com as bolsas que diminuem e isso também te preocupa.

porque agora já é o segundo mês do seguro-desemprego e isso significa que daqui a pouco vai chegar o terceiro e você não fez uma entrevista ainda.

porque agora você tem crises de ansiedade e acorda de madrugada sem respirar e começa a pensar em quem vai ficar com o seu funko da mulher-maravilha no caso de, sabe, você não estar mais por aqui.

e os seus pensamentos são tão intensos e o seu peito dói de uma forma que você acha que realmente não vai mais estar por aqui porque essa dor ela é muito forte e parece que você vai explodir.

chorar não é o suficiente e não pode fazer barulho de madrugada, tipo gritar de dor, porque não dá pra assustar as pessoas desse jeito; fora a multa pelo barulho. é um risco que não dá pra correr. apesar de no meio da crise você ouvir os vizinhos transando às duas da manhã. pelo menos eles são rápidos e em dez minutos, ou menos, tá tudo resolvido cada um virou prum lado e vida que segue.

o mundo lá fora tá quase pegando fogo, é o que dizem os jornais e a tv e a sua mãe que assiste datena “não porque eu gosto, mas pra saber o que tá acontecendo”; não que precise.

e aí você tá com o cesto de roupas sujas cheio, sem previsão de lavá-las porque o técnico não tinha gasolina no carro pra trazer a peça que precisa trocar que vem de manaus e até chegou rápido, mas enfim o que se pode fazer?! até dá pra lavar a roupa do jeito que aprendeu, no tanque, mas essa casa só pode ter sido construída por elfos porque o tanque dá uma dor nas costas absurda.

e aí chega uma tempestade emocional no meio da semana que você pensa “só pode ser brincadeira”, e logo agora você não tava preparada pra reviver uns sentimentos não tão bons sobre si mesma e decide pagar os cinco reais da água porque acha que é isso aí, não tem mais jeito acabou boa sorte.

tem sete dias, mas parecem 50.

é preciso comprar meias. é preciso fazer terapia. é um desejo comprar uma bota pro inverno porque já faz aproximadamente três anos que não consegue realizá-lo. um casaco novo. mas sim, meias.

precisa de dinheiro. precisa de um trabalho. precisa de uma casa. um lugar pros tesouros mais preciosos, os livros. as panelas tão bonitas vão fazer aniversário daqui a pouco.

é tudo.

é muito.

e nessa semana tem feriado.